quinta-feira, 10 de abril de 2014

Boom imobiliário: bom pra quem?



Boom imobiliário: bom pra quem?

IMAGEM DE DESTAQUENos últimos anos, o setor imobiliário brasileiro ganhou os holofotes: o número de novos empreendimentos explodiu, as vendas bateram recorde e, em 2013, pela primeira vez, o crédito para a compra de imóveis superou o crédito pessoal no país, segundo dados do Banco Central (BC). Contudo, o boom de novas construções veio acompanhado de aumento vertiginoso dos preços: nos últimos cinco anos, o valor médio dos imóveis residenciais subiu 121%, de acordo com levantamento do BC, que considera 11 regiões metropolitanas do país. Na esteira dessa valorização, o preço dos aluguéis também disparou.
Assim, embora muita gente esteja comprando, outras estão sofrendo os efeitos negativos dessa aceleração: parte da classe média está sendo expulsa dos bairros bem localizados, e a população de baixa renda levada para regiões cada vez mais periféricas. Essa é a análise da urbanista Ermínia Maricato, professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Ermínia também foi secretária-executiva do Ministério das Cidades entre 2002 e 2005 e secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano do município de São Paulo entre 1989 e 1992, no governo Luiza Erundina. Confira a seguir a entrevista.


Idec: O preço dos imóveis no Brasil não para de subir. Os governos podem ou devem intervir de alguma forma para frear esse aumento?
ERMÍNIA MARICATO: À luz da legislação brasileira, seria possível, sim, combater a especulação e o encarecimento dos imóveis. Segundo a Constituição, o direito de propriedade está subordinado à sua função social. No entanto, na realidade, a aplicação da lei e as relações sociais se dão como se o direito de propriedade fosse absoluto e o direito à moradia, relativo.
Hoje, há uma quantidade enorme de imóveis ociosos e, ao mesmo tempo, uma parte da população está em moradias irregulares. No município de São Paulo, praticamente um quinto da população vive nessa condição; nas capitais do Norte e do Nordeste esse número é muito maior. Não é simples [resolver o problema], porém, em outros países, principalmente na Europa, não há essa desigualdade como aqui, pois há leis que restringem a especulação. Em Paris [França], por exemplo, um apartamento não pode ficar vazio por mais de um ano, se não o proprietário é taxado. Aqui no Brasil, o patrimonialismo é tão forte que não se consegue aplicar nem mesmo o IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano] progressivo, previsto em lei.


Idec: Por que os preços estão subindo tanto?
EM: Porque o imóvel se valoriza muito não só a partir do que é feito dentro dele, mas do que acontece no entorno. A localização é a mercadoria, mais importante do que a habitação em si. A mesma casa em um bairro nobre de São Paulo e no Jardim Ângela [bairro da periferia da capital paulista] teria preços muito diferentes.

O proprietário ganha sem fazer nada: se a prefeitura investe, se tira uma favela ao lado do imóvel, ele ganha. Ou seja, tem gente que se apropria de uma renda extraordinária pela valorização imobiliária, enquanto isso aumenta o custo de vida na cidade e encarece os custos para o Poder Público também. O aumento do preço dos imóveis dificulta para as prefeituras construírem creches, escolas e fazerem obras viárias, porque a desapropriação fica muito mais cara. Esse boom imobiliário é profundamente pernicioso para a política pública urbana.


Idec: Em sua opinião, estamos vivendo uma bolha imobiliária?
EM: Não é uma bolha. A situação aqui é muito diferente da dos Estados Unidos, onde o capital financeiro pegou como refém o circuito imobiliário. Lá, os imóveis passaram a fazer parte de "papéis fictícios", descolando os preços do quanto eles realmente valiam. Então, quando iam ser cobrados, as pessoas não conseguiam pagar. No Brasil, o que está acontecendo é um boom, com a incorporação da classe média no mercado, principalmente da população entre seis e dez salários mínimos.


Idec: Essa elevação do valor dos imóveis contribui para a elitização de alguns bairros? Quais são as suas consequências?
EM: Totalmente. As pessoas de classe média que estão procurando imóveis para alugar estão sendo expulsas dos bairros melhores; as favelas das regiões centrais estão sendo expulsas.


Idec: O programa "Minha Casa, Minha Vida", lançado em 2009 pelo governo federal, tem conseguido cumprir o papel de ampliar o acesso à casa própria à população de baixa renda?
EM: Ele ampliou para a classe média. Para a baixa renda – a população abaixo de cinco salários mínimos, e principalmente a de zero a três [salários], em que se concentra o déficit habitacional – continua como sempre: ocupações irregulares, compra de lotes ilegais e autoconstrução da moradia. O governo tem colocado muito dinheiro de subsídio, mas não está resolvendo o problema de quem mais precisa porque o preço aumentou muito.

Além disso, diante do crescimento do número de imóveis para a classe média, os mais pobres estão sendo jogados para áreas ainda mais periféricas das cidades. Há pesquisas recentes que mostram que o boom imobiliário está promovendo uma nova fronteira de ocupação irregular das áreas de proteção de mananciais. E quem está irregular não tem direitos; essa é a condição que a sociedade brasileira coloca aos mais pobres.


Idec: O Estatuto da Cidade, lei federal de 2001, incorporou a criação de Zonas Especiais de Interesse Social (zeis), áreas demarcadas para habitação popular. Esse recurso tem sido bem utilizado pelos municípios?
EM: As zeis são uma boa medida quando aplicadas. A sua ideia é assegurar moradia social em áreas bem localizadas. Elas não resolvem o problema, mas ajudam. Porém, dá para contar nos dedos quantas foram aplicadas com o espírito de combater a desigualdade urbana e a periferização. Para pegar um exemplo concreto, o plano diretor de São Paulo de 2002 previa diversas áreas para zeis, em lugares bons da cidade. Contudo, essa previsão foi burlada com um decreto do ex-prefeito Gilberto Kassab, que considerou o teto de 16 salários mínimos para algumas dessas áreas. Esse valor, para um país como Brasil, mesmo em uma cidade como São Paulo, pega a minoria da minoria, não tem nada de baixa renda.


Idec: Uma das propostas do Plano Diretor da capital paulista é a criação da chamada "cota de solidariedade", que prevê que empreendimentos de grande porte doem terrenos para a implantação de habitação de interesse social. Qual é a sua opinião sobre a medida?
EM: A cota de solidariedade é importante. Também não resolveria o problema, mas o minimizaria. O difícil é que ela seja aplicada, pois a especulação imobiliária no Brasil é muito violenta e domina totalmente as câmaras municipais. Os donos dos empreendimentos não querem habitação social no mesmo terreno porque o desvaloriza: o preço do imóvel fica mais baixo porque todo mundo vai falar que terá um "conjuntinho" de baixa renda ao lado.


Idec: Outra proposta do Plano Diretor de São Paulo é limitar o número de vagas de garagem em prédios residenciais e comerciais. É uma boa ideia para desestimular o uso do carro?
EM: Na verdade, o principal objetivo é barrar a ocupação de moradias feitas para uma faixa de renda por outra faixa. A aposta é que ter apenas uma vaga de garagem ou só um banheiro no imóvel afasta o interesse das classes mais altas e de quem quer especular. Acho que [a medida] pode ter alguma eficácia. A ideia é desestimular o uso de carro também, colocando essas moradias próximas aos corredores de ônibus.


Idec: Todos os dias, os paulistanos gastam, em média, duas horas e 42 minutos para se locomover na cidade. Essa média é elevada pelos usuários de transporte público que moram em áreas afastadas da cidade. É possível resolver o problema da mobilidade urbana sem aproximar as moradias das ofertas de emprego?
EM: É possível, mas é caro. Para ter uma rede que alcance toda a extensão da região metropolitana com qualidade, o custo é estratosférico. Nos Estados Unidos, isso foi feito: o modelo vigente nos últimos 60 anos foi o de extensão por meio dos subúrbios. As cidades são estendidas horizontalmente, com gigantescas vias, e todo mundo tem automóvel. Contudo, hoje é unanimidade entre os urbanistas do mundo todo que esse modelo é insustentável do ponto de vista ambiental. Nos EUA, para comprar um pão é preciso pegar o carro.

O modelo abstrato que os urbanistas apoiam atualmente é o da "cidade compacta", que é aquela em que tudo está próximo: as pessoas moram relativamente próximo ao trabalho, ao estudo, à unidade de saúde, à padaria etc., enquanto as bordas da cidade são liberadas para áreas verdes, de lazer e de agricultura. Aqui [no Brasil], nós temos o que é pior da cidade compacta – ilhas de calor, congestionamento etc. – e o pior da cidade estendida, que é uma periferia sem infraestrutura.


Idec: Nos últimos anos, temos visto seguidas tragédias causadas por enchentes e desabamentos em várias cidades do país. Em geral, culpa-se a "falta de planejamento urbano" e as moradias irregulares pelo problema. São eles os culpados?
EM: A mídia brasileira, de um modo geral, é cínica. Sempre se diz que é "falta de planejamento". Mas não é por falta de planos. Todas as cidades brasileiras com mais de 20 mil habitantes têm Plano Diretor, e todos os planos falam em combater a desigualdade urbana. Não é por falta de lei ou de planejamento que as nossas cidades são como são. É pela desigualdade social, é pelo patrimonialismo, é pela especulação imobiliária ligada a financiamento de campanha [eleitoral]. Não é preciso fazer mais planos, mas sim aplicar os que já existem.

Fonte: IDEC

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